Por Conceição Gomes
Semana boa e com grandes notícias. Este, sem dúvida, é o texto que mais me agradou escrever. Saber e divulgar projetos consistentes, de altíssimo nível, do povo preto para o povo preto é uma satisfação pessoal! Axé/Amém!
A primeira boa notícia vem da
área da SAÚDE. Pensando no problema do racismo estrutural, buscando dar
visibilidade ao profissional de saúde negro e conectá-lo a pacientes que buscam
representatividade e atendimento mais qualificado em diversas atuações da área
de saúde, chega ao mercado a AfroSaúde, uma health tech de impacto
social focada em desenvolver soluções tecnológicas em serviços de saúde para a
comunidade negra.
Na plataforma, o paciente
poderá buscar médicos, dentistas, fisioterapeutas, doulas, nutricionistas,
psicólogos e profissionais das mais diversas atuações em saúde de forma prática
que entendam as especificidades da população negra para um atendimento mais
qualificado. http://app.afrosaude.com.br/#/
Bom isso, não?! Entretanto, um
assunto ainda a ser muito explicado e discutido, e não apenas entre ou para
racistas, até mesmo para aqueles que se veem não racistas, ou antirracistas,
este, ainda é um universo a ser debatido à exaustão. Uma pequenina informação
para aguçar a reflexão dos que acreditam que este tipo de ação não seria tão necessário
nos dias de hoje.
... Segundo
o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2014, os negros
(pretos e pardos) eram a maioria da população no país, representando 53,6% dos
brasileiros. Atualmente, 80% da população cujo plano de saúde é exclusivamente
o Sistema Único de Saúde (SUS) é negra. Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde
(2015), das pessoas que já se sentiram discriminadas por médicos ou outros
profissionais de saúde, 13,6% destacam o viés racial da discriminação.
Estudos
mostram que o racismo não é uma questão vinculada especificamente ao SUS. Na
rede privada, o racismo também está presente. A diferença nas taxas de
mortalidade hospitalar é uma evidência...
E a segunda excelente notícia vem da área
JURÍDICA. Um coletivo de advogados reuniu-se para atender voluntária e
gratuitamente às pessoas que sofrerem casos de racismo. O Respire Advocacia Antirracista
é um projeto que reuniu um grupo de advogados espalhados por Minas Gerais,
Bahia, São Paulo e Brasília, inquietos e incomodados, para atuar contra o
preconceito racial, seja ele expresso ou velado.
E tão inquieta quanto eles, entrei em contato com o Carlos Santos, idealizador do projeto, fiz algumas perguntas, e ele, gentilmente, nos respondeu. Veja abaixo:
O que; Quando; Como; Onde; Por
que o projeto nasceu?Carlos Santos
Foto: Divulgação
O Projeto Respire nasce de uma
inquietação pautada pela minha vivência como homem negro e advogado. Há um
tempo que milito nas redes contra o racismo, mas senti a necessidade de ir além
do discurso. O Respire, portanto, nasce com a filosofia de efetivar uma luta
contra o racismo, de concretizar o discurso antirracista. A indignação é
importante, mas indignação por si só, internalizada em nós, não resolve esses
problemas que são reais no nosso cotidiano. Não podemos viver apenas alternando
indignações. Somado a essa vontade de enfrentamento efetivo do racismo, a alta
propagação de casos de violência envolvendo pessoas negras foi decisiva para
que o projeto saísse do papel. Convidei alguns amigos próximos que sei que
possuem um engajamento na luta similar ao meu e juntos estamos levando o
projeto à frente.
Qual é a estrutura orgânica, e
como mantém a infraestrutura econômica do projeto?
Atualmente, não temos nenhuma
estrutura física de funcionamento. Não temos uma sede. Atuamos, em regra, à
distância, por meio eletrônico. Há casos em que existe uma demanda presencial,
daí atendemos conforme a possibilidade ou urgência do caso. Até agora, tem dado
certo. O projeto também não conta com recursos financeiros. Todo o custeio, por
enquanto, é feito por nós mesmos colaboradores do projeto.
Falando financeiramente, já
que são voluntários, como vocês atuam em relação à prioridade de casos?
Exemplificando: Sofri um caso de racismo, quero acionar legalmente, entretanto,
não tenho renda para pagar as custas de um advogado, procuro o Respire
Advocacia Antirracista. Pergunto: Farei parte de uma lista em que o advogado
disponível me atenda SOMENTE quando ele não tiver outro caso que o remunere, ou
terei a mesma atenção e acompanhamento que um caso pagante?
A ideia é não fazer qualquer
distinção entre os assistidos do Respire. Nenhum deles desprende nenhuma
quantia, salvo quando for necessário algum documento pago, diligência ou algo
assim. Mas até o momento, inclusive eventuais deslocamentos foram custeados por
nós mesmos. O projeto não possui nenhum advogado trabalhando em tempo integral
e com exclusividade. Os atendimentos são feitos no tempo livre de que dispomos.
Todos os colaboradores vivem da advocacia, portanto também não temos como
exigir dedicação exclusiva. Os casos são atendidos por ordem de chegada e
conforme a urgência demandada. Se são casos que possuem prazos em aberto, damos
prioridade a eles. Esse é o único critério que estabelecemos até mesmo pra não
deixar a pessoa desassistida no tempo em que lhe couber se manifestar num
processo, por exemplo. No início éramos 8 advogados, hoje já somos 15 (os
demais foram incluídos na última semana). Apesar da demanda relativamente alta,
estamos conseguindo manter um fluxo positivo de andamento. O fato de atendermos
no nosso tempo livre, não significa que secundarizamos os casos. Alguns de nós
dispõem de 1 hora por dia, outros um dia por semana, outros duas horas nos fins
de semana. Na qualidade de idealizador do projeto, me sinto integralmente
responsável pelos atendimentos e estabeleço uma meta pessoal de resposta. Foi a
forma que identificamos de continuar tocando o projeto sem recursos, mas também
de não deixar de atender ninguém. Esse é outro princípio que defendemos,
inclusive. Todos os casos, sem exceção, devem obter resposta. Já temos portas
fechadas demais na nossa cara pra reproduzir a mesma conduta.
Aproveito para divulgar a mentoria jurídica também gratuita que daremos a pequenos empresários negros que precisem atualizar ou formalizar seu negócio. Esse é um dos próximos serviços que disponibilizaremos. Entendemos que o empoderamento passa também pela questão econômica. Essa é uma forma de reconhecermos o enorme potencial criativo e de produção de riquezas da negritude. É preciso criar condições para que negros e negras estejam cada vez mais no topo, em posições de liderança e controle.
Foto: Divulgação |
A meta é continuar crescendo e
ampliando nossa rede para mais Estados. Disponibilizamos em nosso perfil um
link para que novos advogados se juntem a nós. Foi assim que os novos
participantes ingressaram no projeto.
De forma simples, para que
qualquer pessoa possa entender, o que é considerado crime de racismo e injúria
racial? E suas respectivas penas.
Bom, inicialmente precisamos
enfatizar que se tratam de leis distintas. A injúria racial, também chamada de
injúria preconceituosa, é tratada pelo Código Penal, e se refere à ofensa
dirigida a uma pessoa específica, em razão não apenas da sua cor, mas também da
etnia, religião, origem ou condição de pessoa idosa ou ainda portadora de
deficiência.
Já os crimes de racismo são
vários e estão previstos na Lei 7.716 de 1989. O crime que guarda maior
semelhança com a injúria racial é aquele definido no art. 20 da Lei 7.716,
porém a diferença básica é que nesse caso a ofensa é dirigida a um grupo de
pessoas, uma coletividade. Não se consegue “pinçar” quem seria o ofendido,
embora ela de fato ofenda, humilhe, inferiorize toda uma minoria. Os demais
crimes de racismo se referem a condutas impeditivas (negar ou impedir alguém de
entrar numa loja, escola, restaurante, por exemplo. Se recusar a promover
alguém no trabalho em razão da cor, impedir de usar o elevador social etc).
Todos esses são definidos como crimes de racismo pela legislação.
Em relação às penas, ambos os
crimes preveem pena de prisão de um a três anos e multa. A diferença básica
consiste no fato de que os crimes de racismo são inafiançáveis e
imprescritíveis por expressa previsão constitucional, enquanto a injúria racial
só se tornou imprescritível recentemente devido a uma exemplar decisão do
Superior Tribunal de Justiça.
Inúmeras Casas de Culto de
Matriz Africana tiveram seus terreiros violados e ficou claro que as agressões
não foram ocasionais ou pontuais, mas, sim, que essas agressões foram
violentamente direcionadas contra todas as Casas de Axé. Isso se caracteriza como racismo religioso? É
crime? Que ações devemos tomar nesses casos?
O racismo tem várias faces e
se manifesta de inúmeras formas. A destruição de Templos de religiões de matriz
africana não é aleatória, é mais um reflexo da sociedade brasileira,
historicamente racista, que alimenta um ódio enviesado a tudo que traz alguma
lembrança da negritude. A profanação de Templos, bem como dos objetos de culto,
é crime previsto tanto o Código Penal, quanto na Lei de Racismo (7.716, citada
acima). O primeiro passo é registrar um boletim de ocorrência e procurar
auxílio jurídico. Pode-se também levar o fato diretamente ao conhecimento do
Ministério Público para que tome as providências cabíveis. O mais importante é
não se calar, não abaixar a cabeça para crimes dessa natureza. Precisamos
combater o racismo em absolutamente todas as frentes, só assim conseguiremos
pensar numa sociedade menos injusta e menos violenta.
Além do instagram, onde
encontramos o Respire Advocacia Antirracista?
O Respire também pode ser encontrado no Twitter @ProjetoRespire. Em ambas as redes há um link com os formulários tanto para as vítimas de racismo quanto para outros advogados que queiram se juntar a nós. São todos muito bem vindos e só temos a somar. Por fim, tomo a liberdade de enviar link para o curso Raça e Justiça que irei ministrar no final de outubro. https://www.sympla.com.br/raca-e-justica-no-brasil__999636 O curso possui uma taxa simbólica de inscrição, mas há também um link de manifestação de interesse para aqueles que no momento não possam arcar com a inscrição. São todos bem vindos: https://forms.gle/Cmj9Skawk82RKfEV7
É isso, boas notícias devem ser compartilhadas!! E você que leu tudo e chegou até aqui, espalhe essas boas novas também. #JuntosSomosMaisFortes. Até a próxima!
P.S.: Uma rara ação extremamente positiva para a equidade profissional em nosso país, realizada pela empresa Magazine Luiza, que lançou um programa de trainees voltado para negros causou um enorme rebuliço. Um defensor público acionou a empresa judicialmente pelo feito. A Defensoria Pública da União soltou uma nota, hoje – 06/10/2020, explicando e dando seu parecer sobre o assunto:
É comum que membros da
instituição atuem em um mesmo processo judicial em polos diversos e
contrapostos e, por isso, é fundamental o respeito à pluralidade de pensamentos
e à diferença de opiniões. Contudo, a representação judicial e extrajudicial da
Defensoria Pública da União e a coordenação de suas atividades são atribuições
do defensor público-geral federal (artigo 8°, I e II, da LC 80/94).
A política de cotas
constitui-se em forte instrumento para a realização dos objetivos fundamentais
da República Federativa do Brasil de construir uma sociedade livre, justa e
solidária, reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos,
sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação. Dessa forma, deve ser incentivada como forma de reduzir
vulnerabilidades.
O caminho é longo e árduo ... contudo,
encontraremos com a vitória no meio dela.