06/12/2022
Filha da mãe
Vera era mãe. Seria a primeira qualidade que atribuiria a si mesma. Depois de
mãe da pequena Milene, Vera era a provedora. Mulher, mãe e trabalhadora que cuida
sozinha de sua casa e de sua menina. Filha de um pai que não queria saber de cuidar.
Vera também era cria de Dona Isaura, mulher preta de braço forte, mãe de cinco filhos
que também tinham um pai, mas foi ela quem cuidou deles todos sozinha. Às vezes,
um apoio aqui, outro ali, ora de uma vizinha compadecida com a trabalheira, ora de
uma colega de trabalho agoniada com a correria da mulher sozinha.
Da vivência em casa da mãe, Vera guardou as palavras “você precisa ser forte garota,
não vê o que acontece aqui, nós precisamos dar conta do trabalho, da casa e das
crianças porque ninguém vai fazer por nós não”.
E era isso que pensava todos os dias ao se levantar da cama. A exaustão a observava
bem de perto, se aproximava à noite ao deitar-se e vigiava. Quando acordava, estava
ali, à espreita, esperando Vera hesitar para tomar conta do corpo e da mente. Ela era
tinhosa e ignorava aquela presença.
A relação com sua pequena era amorosa. Agradecia aos céus por lhe enviar uma
menininha que se pendurava em seu pescoço e lhe oferecia chuva de beijos. Subia no
banquinho na frente da pia da cozinha e ajudava, mesmo que fosse só recostar no
braço da mãe para ficarem juntas durante as tarefas. Nas datas comemorativas, como os
aniversários e natais, se encantava com qualquer mimo que a mãe lhe oferecia.
Aquela companhia era um bálsamo quando batia o desespero de precisar escolher
entre comer e pagar o aluguel.
Aos sábados pela manhã, elas preparavam juntas o café, as panquecas para comer
com geleia, os biscoitos de canela e assistiam na televisão velha um programa que as
duas gostavam. Um dia a pequena comentou:
“Mamãe você tá assim ó.” A menina levou as mãos às bochechas e puxou para baixo,
simulando uma face caída.
“A mãe tá cansada. É assim minha filha, preciso trabalhar, tomar conta da casa e
cuidar de você, mas eu sou forte.”
“Mas você não precisa ser forte toda hora porque eu também cuido de você, a gente
divide mamãe, aí você não fica cansada.
”
Com os olhos brilhando, de certo por causa da água que brotava deles, Vera beijou-lhe a testa. Conteve o choro, como fizera tantas vezes, pensando que não tinha ainda
a sabedoria de sua menina.
“Existe toda essa construção de que a mulher negra ela tem que ser guerreira, ela tem que ser forte.
Na verdade, a gente tem que ser forte porque o Estado é omisso. Naturalizar uma pretensa força da mulher negra
é negar as violências sistemáticas das quais elas são vítimas historicamente.”
Djamila Ribeiro MARAVILHOSA no programa Roda Viva de 09/11/2020.
16/06/2022
Café de amanhã
Ivana estava no banho quando o cheiro vindo da cozinha invadiu sua privacidade, tomou suas
narinas e o corpo. Sob a água morna, reagiu. Seu cérebro avisava que o dia iniciava. Mais um
dia, mais uma manhã. Uma vez mais, um café. Mariano estava na cozinha, como fazia todos os
finais de semana preparando alguma coisa que ele diria ser especial, só para ela. E lá se vão quase três décadas de estrada comum com aquele homem, metade do tempo
vivido no mesmo lugar. Inebriada pelo aroma mobilizador das memórias, sentimentos e
sensações, Ivana se perguntou por que ainda estava ali, naquela vida, naquela casa, com
aquela pessoa que lhe servia pretensos cardápios matinais excepcionais. O coração apertou, a
semana tinha sido difícil, julgou-se emotiva com alguma razão. E a pergunta martelava, por
quê?
Respeitando as regras do desjejum de sábado, ela só apareceu na varanda depois de posta a
mesa. Estava apetitosa, como de costume. Mais uma vez a pergunta rodava.
Fechou os olhos e ouviu a algazarra das crianças, de quando eram pequenas e transformavam
qualquer atividade rotineira em uma verdadeira festa. Sorriam, corriam, discutiam, foi a trilha
sonora de tantos anos na casa. Hoje vazia. Mesmo naquele tempo, o café da manhã era
especial e Mariano fazia com que todos desfrutassem e respeitassem o momento de Ivana.
Fazia sentido na vida em família, mas se questionava por que continuar se a trama doméstica
já não era o tecido compacto e bem trabalhado, ainda que mantivesse uma beleza, com
delicados desenhos e relevos.
Foi recebida com o sorriso de alguém que acabara de descobrir as delícias da vida a dois. E
como se não bastasse aqueles olhos brilhando ao vê-la, Mariano foi ao encontro de Ivana com
uma margarida tirada do arranjo caseiro no centro da mesa. Trouxe-a pela mão e se gabou da
refeição daquela manhã, “está realmente especial desta vez, você vai adorar”.
Era um ritual de tamanha simplicidade que a emocionava todas as vezes. O café preto no
ponto preciso para o gosto dela, a conversa interessada sobre as coisas que viveram ao longo
da semana, a preocupação e a celebração por causa dos filhos, os pés roçando sob a mesa.
Ivana falava sem parar, animada, contando as situações inusitadas que a perseguiam no
trabalho. Mariano não a interrompeu, nem quando tirou o excesso de açúcar de confeiteiro
que restou nos lábios dela depois de comer um dos croissants. Ela quem se deu conta e parou
de falar. Sentiu a mão que lhe acariciava a bochecha, retribuiu beijando a palma macia. Tudo
sem perderem os olhos do outro de vista. Inevitavelmente o sorriso acendeu os rostos
apaixonados.
A cada semana a pergunta espreitava Ivana. Como era possível depois de quase três décadas
de estrada comum? A única resposta que tinha era de que o café de amanhã ao lado dele
estava garantido.
04/05/2022
Junte-se a nós
Itamar abriu os olhos devagar e levou um tempo para se lembrar do que havia
acontecido, aonde estava e por quê. Aos poucos vieram as lembranças de se sentir
mal e cair em seu escritório. Se viu rodeado de pessoas que olhavam de cima
enquanto ele estava debilitado e frágil estendido no carpete elegante de sua sala.
Depois disso, não tinha memória de mais nada.
Menos ou mais de um dia, não tinha ideia de quanto tempo estaria deitado naquela
cama, ao que parecia, um leito de hospital. O quarto, que estava a meia luz, tinha uma
decoração discreta, com cores pastéis, um toque minimalista e de bom gosto. Mas
ainda era um quarto de hospital e em sua cabeceira estava toda parafernália
característica.
Notou duas pessoas na entrada do quarto espiando, ele não os reconhecia e pelas
vestes, estavam no hospital na mesma condição. Tentou erguer um pouco o tronco
para que os dois soubessem que ele também os observava.
― O que é? Por que vocês dois estão aí me vigiando?
Os dois se entreolharam a mulher levantou as sobrancelhas e o homem se gabou:
― Não te falei, eu te disse que ele ia falar com a gente.
Os dois foram adentrando o quarto com cautela. Itamar concluiu que era uma mulher
de meia idade e seu acompanhante provavelmente regulava a idade entre a da mulher
e a dele próprio.
― Vão chamar alguém e dizer que acordei.
Os dois voltaram a se entreolhar. A mulher falou primeiro:
― Você sabe o que aconteceu? Por que veio parar aqui?
― Me lembro vagamente, passei mal no trabalho. Aliás, preciso que me liberem logo
daqui, deixei uma série de coisas importantes demais em andamento e nada vai se
concluir sem mim.
― Se fosse você, relaxava um pouco. Trabalho não é tudo nessa vida homem. O
trabalho alguém resolve, cuide de você mesmo ― o homem falou desta vez.
Itamar bufou.
― Por que vocês não fazem logo o que eu mando?
― Interessante Lucrécia, você tinha razão.
― Quem diabos vocês são? Tinha razão do que?
― Eu sou Lucrécia, uma embolia me fez parar aqui.
Itamar revirou os olhos.
― Pode me chamar de sir Anthony ― o homem fez uma espécie de reverência,
mostrando o topo da cabeça calva e seu cabelo de um grisalho uniforme e
contrastante com a pele escura.
― Sir? Anthony? Você não parece britânico e nem detentor de um título.
― Aqui eu sou sir Anthony sim, não aceito ser chamado de outra maneira.
― Você tem algum título também? ― Itamar dirigiu-se a mulher.
Lucrécia deu um meio sorriso, levantando apenas um dos cantos da boca:
― Não preciso de título, acho que o nome basta, combina comigo, é forte como a
minha personalidade.
― E qual seria? ― Itamar perguntou impaciente, mas curioso.
― Eu sempre fui incompreendida, pra começar. Eu gosto de estar ciente de tudo que
acontece a minha volta e gosto de poder ajudar as pessoas. Me chamam de
intrigueira, traiçoeira e grossa. É o que se ganha sendo sincera.
― Não deixa de ter um título madame Lucrécia ― sir Anthony, com o queixo apoiado
no polegar da mão direita, falou com tom grave.
― Mas esse aí não é sir mesmo, nem na ala psiquiátrica. É de lá que vocês vêm?
― E eu posso saber por que você não acredita no meu título?
― Basta olhar para você ― Itamar falou cruzando os braços. ― Nem sei se você
deveria estar hospedado neste lugar.
― Você se acha melhor do que eu porque pode pagar esse luxo? ― Falou olhando
em volta. ― Uma coisa você acertou, vim parar aqui por acaso, um piripaque
generalizado do outro lado da rua, enquanto vendia água de coco na minha
barraquinha.
― E deixaram você ficar? E quem paga por isso? São os miseráveis como você que
fazem a conta da gente ficar mais alta porque a essa altura, vou pagar por mim e por
você.
Itamar sentou-se na cama com essa discussão, buscava por indícios de suas coisas
no cômodo. Lucrécia e sir Anthony arregalaram os olhos.
― Não tinha visto isso ainda ― a mulher falou para sir Anthony.
― Acho que agora foi.
Os três olharam para a porta ao ouvir o carrinho da enfermagem que se aproximava, a
enfermeira espiou dentro do quarto e voltou na mesma hora.
― Maldita, volte aqui, eu preciso sair, preciso da minha alta. Mulher inútil, mal
educada, nem entrou para me dar uma satisfação.
Lucrécia e sir Anthony repetiram o gesto de se olharem.
― Vai começar o fuzuê Lucrécia.
Itamar fuzilou os dois com o olhar e ia discutir quando a equipe médica irrompeu
quarto adentro.
― Enfim, vocês demoraram demais a...
A equipe o ignorava e um médico jovenzinho dava ordens a cabeceira da cama para
todos se posicionarem, Itamar olhou para trás e viu seu tronco ainda deitado, a cabeça
no travesseiro, a boca semiaberta. Pulou da cama e se virou rápido para espantar
aquela alucinação, mas o corpo não acompanhou. A equipe estava agitada em volta
do “ele” que permanecia deitado e o “ele” de pé começou a falar desesperado.
― Que porcaria é essa? Por que eu tô aqui e tô ali? Me acorda enfermeira.
A equipe médica estava focada no procedimento e Itamar dava ordens.
― Me acordem seus incompetentes, o que é isso? Não pode ser. Eu pago, vamos lá.
Eu dou a quantia que precisar, mas me tragam de volta seus imbecis.
|
Brad Pitt no Filme Encontro Marcado |
Itamar andava de um lado para o outro, gritando com a equipe e o mesmo Itamar
estava ali na cama passivo. Depois de uns quinze minutos o médico fez um sinal para
encerrar o procedimento e falou a hora. A equipe foi deixando o quarto.
Itamar surtou, gritou, esperneou, chorou afinal.
― É Lucrécia ― sir Anthony falou pausadamente balançando a cabeça.
A mulher estalou a língua e com a cabeça de lado observava:
― Nem um parente para segurar a mão dele, triste.
Os dois estavam em um canto do quarto assistindo à cena protagonizada por Itamar
quando mais alguém entrou.
― Ih, esse momento é complicado, agora que ele vai pirar.
Era o homem com a maca e sobre ela um saco preto.
11/04/2022
Atrasados
Ambos
carregavam nos ombros arqueados a bagagem de mais de cinco décadas de muitos
desencontros. Ela não podia confiar, ele não queria se comprometer. Eram boa
companhia, concordavam nesse ponto e isso bastava. Sabiam também que um
descuido e cairiam na armadilha que tentavam evitar.
Se
encontravam sempre que podiam, cafés, caminhadas, videochamadas, passavam boas
horas em embates, debates, risadas e se tolhiam. Um jantar em casa, não
distinguem de quem foi a ideia, se dela ou dele. Justificaram. Era uma
afinidade. Montaram a arapuca.
Decidiram
a casa, combinaram os pratos e as compras. Aguardaram. Que ela arrumasse uma
desculpa e desmarcasse, que ele simplesmente não aparecesse. No dia e hora
combinados arriscaram. O cumprimento foi desajeitado. Ele tinha um buquê nas
mãos, ela tinha a música e meia-luz.
Reuniram-se
na bancada da cozinha e definiram os papéis.
Na busca pelos ingredientes sobre a pedra, as mãos se embaralharam
provocando risos e olhares. Ora ela observava as mãos grandes cortarem com
cuidado alimentos delicados. Ora ele observava o rosto de perfil mordendo o
lábio inferior ao perfumar com temperos o corte selecionado.
Os
odores, as texturas e temperaturas estimulavam os sentidos e punham os dois em
alerta. O roçar da pele, cada vez que se cruzavam, imprimia no corpo de ambos
um registro que desconheciam, se possível àquela altura da vida.
Ela
abriu o vinho lentamente e o estalido da rolha se libertando da garrafa pela
primeira vez a fez suspirar. O som do vinho derramado na taça atiçou a memória
e as papilas se excitaram. Antes do vinho o beijo, o hálito, os lábios, a
língua. Uma confusão de sensações, um despertar de sentimentos. O vinho ganhou
um sabor único, tal qual o beijo.
Sem
perder o contato com o olhar dele, ela apontou para a panela que ardia sobre o
fogão. Ele apertou os olhos com o polegar e o indicador e soprou forte o ar
aquecido no peito inquieto. Se deixou embalar pela canção ao fundo e pensava nas
escolhas ingeríveis da vida ao cruzar caminhos.
Ele
pegou um botão do arranjo, serviria para compor a mesa do jantar. Buscou dela a
aprovação. Roçou as pétalas aveludadas na nuca, na linha do ombro, descendo
pelo braço. Ela apenas se rendeu, de olhos cerrados sentiu o toque suave da
flor e dos lábios úmidos. Enquanto as mãos errantes percorriam os contornos
dela, buscaram as bocas uma vez mais para atender o desassossego de línguas
atrevidas.
“Tanto
a perder”, a frase surgia no pensamento comprometido pelas delícias da primeira
vez. Despiram-se de dentro para fora e se permitiram. Inseguros, incertos,
receberam-se no corpo um do outro. “Tanto a viver”. Na ânsia de saciar a fome
que os devorava, derrubaram taças, talheres, barreiras, buscaram sofá, acharam
tapete, evitaram laços, acharam intimidade, prazer, gozo.
Tempestade
amansada, ficaram à deriva, lado a lado, mãos unidas, o olhar desnudo. Foram emboscados.
Ela precisava dizer:
―
O jantar vai atrasar.
20/03/2022
Lugar comum
Manhã de domingo, como todas as outras. Vou até a janela medir o clima e alimento a
esperança de vê-la. Todos os dias aquela mulher exuberante subia e descia a minha
rua. Era impressionante observar seus movimentos segurando as sacolas de compras
do mercadinho. Estava sempre linda. As longas tranças na altura da cintura fina
emolduravam um rosto de musa. O corpo torneado, de pele firme, com a “cor do
pecado”. As pernas se movimentavam e faziam todo aquele conjunto agir com graça,
um molejo que só as da sua raça conseguem ter. Mesmo com suas sandálias rasteiras
e seus vestidos simples do dia a dia, balançando displicentes no ritmo de seu
caminhar de uma ninfa negra, era só encantos.
Eu imaginava o quanto essa mulher seduzia a todos por onde passava, os olhos de
gata faziam mergulhar nas ideias da luxúria, do desejo. Certamente devia ser a rainha
de alguma escola de samba, daquelas que dançam com biquínis pequenos,
adornados com brilhos e que deixam a mostra uma escultura em forma de mulher. O
tipo que habita o imaginário de homens e mulheres que desejam ser ela ou dominá-la.
Segui minha rotina de todos os domingos, café preto na padaria da esquina e depois
feira livre. Primeira parada na barraca de flores para encomendar o arranjo que adorna
a casa ao longo da semana, compras dos alimentos necessários e a última parada na
barraca de pastel. E pela primeira vez, fiquei frente a frente com aquela mulher que eu
julgava o símbolo de todo pecado do corpo. E pude observá-la bem de perto.
Não estava só, a acompanhava um rapaz, um tanto franzino, que devia ser um pouco
mais velho do que ela ou ter a mesma idade. Cada um segurava uma criança, ele
tinha no colo um menininho de uns três anos, de olhos atentos e muito sorridente,
parecia muito feliz segurando um pastel que não podia ser contido por suas
mãozinhas. Ela conversava com a menininha um pouco mais velha que o menino, a
pequena tinha a cara muito emburrada e fazia um beicinho de choro, contrariada com
o copo de suco que a mulher oferecia.
Aquela cena me prendeu, não conseguia desviar minha atenção da dinâmica tão
familiar, de intimidade. Casada e com dois filhos pequenos e tão lindos. Fiquei ali a
observar as trocas de carinho entre mulher e marido, entre pais e filhos e reconheci
uma moça jovem, mãe, filha, esposa, vizinha, amiga.
Me levantei para quitar minha dívida na barraca de pastel. Foi quando a boneca de
pano caiu e, num ímpeto, me abaixei para pegar no mesmo momento que a jovem.
Nossos olhares se encontraram por alguns instantes. O olhar dela era meigo, protetor,
de uma mãe, acompanhado de um sorriso sincero. O meu era de vergonha.
02/03/2022
Ruptura
Eu vivia trancada em mim, só que o espaço era cada vez menor. Naquela segunda-feira eu estava inconformada. “Não posso sair sozinha, não posso falar tal coisa, não
posso fazer isso ou aquilo e não posso querer”. Eu parecia uma onça enjaulada.
Corpo todo formigava. “Não vai fazer”, “vai fazer”. Eu brigava pra ir e pra ficar. Abri o
armário, o branco do jaleco reluziu, ele me implorou para que o pegasse. Improvisei
sem dificuldades uma touquinha branca e peguei quatro máscaras descartáveis na
caixa com cem que comprei há alguns anos, época em que o item era peça de
vestuário obrigatória. Pedi perdão às divinas da enfermagem, justifiquei que ia curar
uma alma. Passei a mão nos óculos escuros e prestes a atravessar a porta, dei meia-volta, corri até o quarto enquanto tentava tirar a aliança apertada. Deixei-a sobre a
mesa de cabeceira.
No elevador, eu roía as unhas e o coração batia compassado, mas com violência. Já
na calçada, aspirei com vontade o ar que consumi com parcimônia a vida toda.
Entrei na farmácia perto de casa, tomei duas ampolas de precaução e comprei duas
mamadeiras, uma para cada bolso do jaleco. Uma ia cheia de gin com vermute e a
outra pensei em encher de água para hidratar, afinal fazia calor aqui dentro e do lado
de fora. “Água é o cacete, enche de conhaque”, o atendente do bar me olhou com
desprezo, achando que eu, como o resto da cidade, já estava bêbada àquela altura. E
fiquei surpresa ao perceber que a opinião dele não me importava. Enquanto as
mamadeiras eram preparadas, virei uma tulipa de chope estupidamente gelado, sem
nenhuma cerimônia, sem perguntar se podia.
Dobrei a esquina e vi aquela multidão aquecida, viva e me chamando. E eu fui. Sem
saber o que buscava exatamente, comecei a sentir um frenesi gostoso, a mamadeira
me confortava. Cantei alto, ninguém ligou, dancei torto, ninguém reparou. Me diverti
então. Recebi tantos sorrisos que me achei querida.
Um carro tentou afrontar a multidão e foi soterrado pelos braços que subiam no refrão
da marchinha. Me senti afrontada também, subi no capô do carro e mostrei a bunda
para o motorista, baixei a máscara e dei língua para a multidão. E vice-versa. Foi uma
gritaria, eu me atirei naqueles braços.
Não me insultaram, mas me xingaram. Eu gritei que era vadia sim, em todos os
sentidos que quisessem atribuir à palavra, graças às deusas.
“Mas é problema só meu, vigiem os seus próprios demônios porque desses aqui”, bati
no peito com firmeza, “cuido eu”.
As mais contidas esbugalharam os olhos e pude ver no fundo deles alguma satisfação
e pude me ver no fundo deles. Era um eu que caía, desaparecia na escuridão do olhar
do outro. Sacudi a cabeça e voltei para a minha experimentação.
Propus ménage, não escolhia entre mulheres e homens, os olhos mais tolos
brilhavam. Eu pedia com voz de urgência “busca um carro e me encontra na esquina,
vai, corre”. Nunca dizia em qual esquina e se dissesse, não me lembraria.
Um sujeito me pegou pelo braço, explodi, gritei que tivesse compostura e que eu não
era uma fruta na feira pra ser apalpada por babaca nenhum. Fui grossa. Ah eu fui
grossa e foi perfeito, libertador.
Dancei, bebi e gritei, tudo em excesso. Não me recordo como e quando decidi voltar
pra casa, não me lembro do caminho que tomei, eu só fiz. Acordei na minha cama
fantasiada e sem máscara, era madrugada. Relutei em abrir os olhos com medo do
mundo girar. Fui vacilante para o chuveiro e lavei a ousadia, a fantasia eu queimei.
Esperei a pior das ressacas, aquela que ampola nenhuma ameniza. As horas
avançaram e eu me sentia cada vez melhor.
Coloquei de volta a aliança apertada, arrumei os cabelos, vesti uma das minhas
roupinhas que também me apertavam, mas me senti confiante para pedir ao elefante
que finalmente deixasse a minha sala.
14/02/2022
Aceitação
Márcia abria e fechava as mãos em frente à porta da casa do menino mais popular do
primeiro ano do segundo grau. Antes de tocar a campainha, conferiu uma vez mais se
os cabelos estavam bem alisados, se o caimento do vestido estava adequado e
esfregou os lábios grossos como se pudesse com isso deixar o batom impecável.
Tomou coragem e entre seu dedo apertar o pequeno botão e obter alguma resposta,
experimentou o passar de uma era. A porta se abriu e a iluminação do interior da casa
ofuscou seus olhos, precisou de alguns segundos para se acostumar e reconhecer o
rosto com sardas do rapazinho de cabelos afogueados que lhe sorria.
Márcia ingressara em uma escola nova para cursar o ensino médio. A família não
dispunha de muito dinheiro, mas o pai fazia absoluta questão que a filha tivesse a
melhor educação. Um homem que largou os estudos cedo para ganhar a vida. O
talento para a música o fez enveredar-se pela arte. Apesar das incertezas da
profissão, trabalhava bastante e decidiu matricular a filha única em uma escola
conceituada, uma das melhores.
― Você vai ficar aí fora?
A jovem foi despertada pela voz alegre do anfitrião. Ela poderia jurar que ele a
observou com cuidado e sorriu. Talvez tenha gostado do que via, uma luz acendeu em
seu peito.
Para Márcia, sair da pequena escola em que passara a infância era um desafio. Era a
certeza de que veio ao mundo para ser algo mais, somado ao apoio dos pais, que
fazia com que quisesse enfrentar o novo.
Ela seguiu o rapaz até a sala com uma mesa grande repleta de quitutes, onde colocou
a travessa de empadinhas de queijo. Tinha certeza de que seu prato seria um dos
melhores porque sua mãe era uma cozinheira de mão cheia e escolheu uma iguaria
para impressionar os amigos.
Estava há sete meses na turma da manhã e era a primeira vez que a convidavam para
uma atividade social fora da escola. Passou a maior parte do primeiro semestre
sozinha. Sentava-se nas carteiras da frente, primeiro porque gostava de prestar
atenção à aula, depois porque evitava que reparasse nos demais alunos e evitava que
pensasse se estariam falando dela, zombando dela, julgando-a pelo fato de estar ali.
Sentia-se uma invasora. Estudar em uma escola como aquela? Quem lhe dera esse
direito? Em sua cabeça, o isolamento que experimentava era a confirmação de seu
receio.
Juntou-se aos demais jovens que conversavam com animação na sala de estar. No
toca-discos o álbum Dois, recém-lançado, de uma banda do planalto central era o
fundo perfeito. As histórias contidas naquelas canções a inspiravam.
Para Márcia era comum se destacar, fosse pela aparência, fosse por sua capacidade
de se comunicar, ia das crianças aos idosos. Sabia o tom certo para cada ocasião. E
assim foi na escola nova. Logo os professores perceberam se tratar de uma aluna
aplicada, estava constantemente entre as melhores notas da turma. A atenção que
recebia fez com que os alunos também a notassem e ela começou a ter companhia
nos intervalos, no recreio estava sempre ajudando alguém com alguma matéria ou
exercício. Para os trabalhos em grupo era disputada. Estava satisfeita e começava a
acreditar que pertencia sim aquele espaço. Não queria estar em nenhum outro lugar.
Faltava apenas que o convívio extrapolasse os muros da escola, afinal era a
adolescência e queria sair, paquerar, se divertir como qualquer outra garota.
Finalmente o convite chegou e partiu do menino mais legal da turma, o mais
encantador.
― Vamos nos reunir na minha casa, no sábado, meninas levarão um prato salgado e
rapazes levarão a bebida. Você topa? ― O rapaz arqueou os lábios em um sorriso
que irradiava até olhos.
Márcia se limitou a balançar a cabeça afirmativamente. Não quis arriscar ser traída por
uma voz trêmula. O coração estava aos saltos, as mãos suavam e ela tinha a
sensação de que derreteria ali mesmo.
Era real, estava ali. Conversou com grupos diversos. Avaliou as conversas como tolas
a maior parte do tempo, eram futilidades, opiniões equivocadas, conhecimento raso de
questões cruciais, mas concluiu que ninguém estava ali para debater o futuro da
humanidade, todos queriam se divertir.
Com o avançar das horas, o grupo foi reduzido a alguns rapazes e moças da turma.
Finalmente estavam em uma roda única de conversa e ela pôde ficar perto do menino
simpático que a convidara.
Não sabe bem como o assunto passou a ser origens e todos veneravam a
ancestralidade no velho mundo, eram duas, três nacionalidades diferentes na
constituição daqueles jovens brancos. Márcia levantou-se discretamente e foi pegar
um refrigerante e ainda confirmou que as empadinhas já não existiam, sorriu
triunfante. Cruzou com a moça que organizava a bagunça e recolhia pratos e copos
sujos. Era, além dela, a única negra na casa. Buscou um conforto nos olhos da
mulher, mas era como se fossem ilhas, podiam se ver, mas um mar as separava. Um
incômodo fez com que tomasse o caminho de volta às origens.
Felizmente para ela, a conversa tomara outro rumo, ainda focado nos jovens.
Contavam os planos futuros, estudar fora do país, assumir os negócios da família e
uma garota achava que não teria tempo para a vida profissional porque queria ter
filhos cedo.
― E você Márcia, já sabe o que vai fazer? ― perguntou uma adolescente com cabelos
tingidos de loiro.
― Ainda não estou bem certa, mas tenho interesse em...
― Você deveria cursar medicina ou algo assim, você é boa. ― Elogiou um rapaz de
cabelos pretos e óculos com lentes grossas.
― É mesmo, você é diferente, é inteligente. ― Disparou a moça dos cabelos tingidos.
― E é bonita também ― falou o rapaz de cabelos afogueados.
Os olhos de Márcia se arregalaram.
― Bonita e inteligente. ― Ele repetiu. ― Você seria perfeita se... É uma pena que
você é escura.
― Você é especial Márcia ― tornou a falar o rapaz de óculos. ― Eu diria que você
tem uma alma branca.
Márcia balançou a cabeça de leve, seu rosto era uma máscara congelada em um
sorriso sem tônus. Pigarreou para desfazer o nó que se formou na base da língua e
rezou para deixar de ser o assunto. Não entendeu bem o porquê, mas seguiu dispersa
na meia-hora seguinte, não conseguia prestar atenção em nada do que era dito. Até
que por fim, seu pai chegou para buscá-la. Se despediu com um aceno, pegou sua
travessa e foi acompanhada até a porta pelo jovem simpático que a recebeu em sua
casa.
― Você é bem-vinda Márcia.
Antes de entrar no carro percebeu que seu coração não acelerou ao se despedir do
rapaz, estava dolorida, uma dor confusa, difusa.
― Como foi a festa filha?
― Boa pai, muito boa.
Claudia Nogueira é escritora, cantora e atuante na área do direito autoral de música.
Claudia desenvolve com sutileza o texto. Cuida do leitor, apresentando cenas e personagens, para que nos sintamos partícipes. Provoca que esperemos a próxima história.
ResponderExcluirObrigada Pedro. A próxima história virá em breve.
ExcluirAdorei a riqueza de detalhes. Já me identifiquei e estou aguardando ansiosa a próxima história:)
ResponderExcluirAh que boa notícia. Animada para lublicar a próxima.
ExcluirEm vários momentos não sabia se lia a história de Márcia, ou a minha própria história. Texto rico em detalhes e de conteúdo envolvente. Já sentada com uma xícara de café nas mãos esperando o próximo! #Ubuntu
ResponderExcluirEsse retorno me anima a escrever mais e mais. Obrigada Ceição Gomes, sua maravilhosa.
ExcluirAguardando os próximos parágrafos... parabéns, Cláudia. A propósito, bem vinda ao Eai!
ResponderExcluirObrigada!!! Estou muito feliz e honrada.
ExcluirNão conhecia esse seu lado literário, Claudíssima! Adorei sua escrita. Achei especialmente forte como você constrói a atmosfera equilibrando a aparente leveza da festa com o peso gigante que tá por trás. Arrasou!
ResponderExcluirRodrigo, meu querido! Que alegria ter vc por aqui. Obrigada pela leitura e pir esse retorno.
ExcluirNão consegui interromper a leitura de tão dinâmico que é o texto, amei a riqueza de detalhes, quanta entrega você oferece ao leitor, parabéns
ResponderExcluirObrigada Paulo! Delícia estar aqui com vcs.
ExcluirClaudia escreve nos convidando a entrar, detalhes desenham em minha mente todos ambientes e personagens. Me fez lembrar o mestre Machado de Assis. Adorei. Bem vinda Cláudia. Mais um café e mais um conto por favor. Bj p equipe do Blog.
ResponderExcluirRonnaaaaa, que bom o seu retorno. Em breve msis um café e mais um conto certamente bjus
ResponderExcluirMe senti a personagem... Em tempos de escola, encontro na casa do mais popular! Ser diferente é normal, espero que a continuação venha logo... Está no Sangue a contação de história!🤟🏻
ResponderExcluirQue te ver por aqui! Obrigada pelo retorno, desfrute do segundo texto. Bjus
ExcluirParabéns, adorei o texto espero a continuação da história.
ResponderExcluirObrigada Selma!!! Já temos o segundo fresquinho. Bjs
ExcluirMas vc não falou da Márcia trabalhou outro personagem, gostei mais estou querendo saber o que rola na história da Márcia
ExcluirTexto sensível, envolvente, como tudo que você escreve. Sorte poder ser sua leitora.
ResponderExcluirFernanda querida! É reciproco, também considero um privilégio ser sua leitora. Bjus
ExcluirLeio de uma pegada só! Com a emoção da história correndo nas veias...
ResponderExcluirQue boa visita essa! Obrigada pelo retorno querida.
ResponderExcluirLugar Comum é mais um texto reflexivo e elucidativo sobre impressões, pré-conceitos, fantasias e fetiches relacionados aos corpos negros. Ainda temos muito o que evoluir como seres humanos.
ResponderExcluirA cada conto, um conto pra encantar. E que fazem querer mais, de cada um. Só te cada personagem que constrói, uma história se faz... Já já se tornaram um Livro? Continuando cada trecho?..
ResponderExcluirParabéns 👏🏻👏🏻
Uma publicação no futuro? Por que não? Sigo escrevendo e vamos ver aonde isso me leva rsrsrs
ExcluirAdorei o novo texto. Você é genial, amiga! Seus textos são deliciosos de ler.
ResponderExcluirA admiração é recíproca Fê, obrigada!
ExcluirCláudia prima pela construção das cenas. Em Atrasados somos imersos na vivência das personagens. Apreciamos a história de dentro.
ResponderExcluirApreciar a história, essa é a ideia Pedro 😉
ResponderExcluirA cada nova Leitura cresce a vontade de ler mais um encontro , desencontro, aventura...de personagens descontraídamente aqui descrevidos em cada novo café ... Parabéns Cunhada 👏🏻
ResponderExcluirE chegou o Momento... Em seu novo conto : JUNTE- SE A NÓS me vejo a refletir sobre o que eu quero deixar marcado nesta VIDA. Que faço do meu TEMPO e que realmente importa. Quais , quem são nossas prioridades e o que fazemos com nosso 'tempo' neste Planeta. Parabéns mais uma vez Cunhada pela dissertação leve e marcante.
ResponderExcluirObrigada pela leitura cunhada, me impulsiona a escrever mais
ExcluirGosto das histórias e das personagens. Dão a impressão que saíram de alguma cena conhecida e ocuparam lugar nos textos. Sensibilidade da autora.
ResponderExcluirObrigada pela leitura e pelo retorno que é tão importante pra nós autores
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